OS QUATRO SURDOS - Conto - Vladmir Odoevsky
OS QUATRO SURDOS
(Conto Indiano)
Vladmir Odoevsky
(1803 – 1869)
Não muito longe da aldeia, um pastor pastoreava as suas ovelhas. Já passava do meio-dia e o pobre pastor estava com muita fome. É verdade que, ao sair de casa, ele pediu à esposa que lhe levasse o café da manhã, mas a mulher, como se de propósito, não o fez.
O pobre pastor atirou-se aos pensamentos. Sabia que não poderia voltar para casa, já que não poderia deixar o rebanho à própria sorte, sujeito aos ladões. E nem lhe parecia uma alternativa plausível — decerto pior —permanecer onde estava, já que a mordida fome lhe seria um tormento.
Olhando para um lado e para o outro, finalmente viu o vigia da aldeia, que ceifava a relva para alimentar a sua vaquinha.
Aproximando-se, disse-lhe o pastor:
— Por favor, querido amigo, cuide para que meu rebanho não se disperse. Irei para casa tomar o desjejum e depois voltarei imediatamente para cá. Se me ajudares, recompensar-te-ei generosamente pelo teu favor.
Parece agira o pastor agiu com muita prudência; e, realmente, ele era um homem deveras inteligente e cauteloso. Mas era surdo. Tão surdo que um tiro de canhão, próximo aos seus ouvidos, não o faria olhar para trás; e, pior ainda, falava com um outro surdo. Com efeito, o vigia não ouvia melhor do que o pastor e, por isso, não era de admirar que não entendesse uma palavra sequer do que lhe falara o pastor. Pareceu-lhe que, pelo contrário, o pastor queria tomar-lhe a relva cortada. Então, esbravejou:
— Que queres tu com a minha grama? Não foste tu que a cortaste, fui eu. Por acaso a minha vaquinha haverá de morrer de fome para que o teu rebanho seja alimentado? Diga o que disser, não vou abrir mão desistir da minha grama.
Tendo dito isto, o vigia abanou a mão com raiva. Mas o pastor pensou que ele lhe havia prometido e foi para casa, tranquilo, com a intenção de dar uma boa sova à mulher, para que ela jamais deixasse de lhe levar o desjejum.
Quando chegou em casa, o pastou viu que a sua mulher, estirada no limiar da porta, chorava queixosamente. O bom pastor esforçou-se por apará-la. Deitou-a na cama, deu-lhe remédio e fê-la sentir-se melhor. Não se esqueceu, todavia, de seu desjejum. Todo esse contratempo estendera-se bastante e o pastor sentiu-se inquieto.
— Como estará o meu rebanho? Sinto que uma desgraça virá prontamente — pensou o pastor.
Então, apressou-se em voltar ao campo. Para a sua grande alegria, viu que o seu rebanho continuava a pastar, com tranquilidade, onde o havia deixado.
Todavia, como um homem prudente que era, contou todas as suas ovelhas. Concluindo que o número de cabeças continuava o mesmo, disse a si mesmo:
— Homem honesto, o vigia!
Em seu rebanho, havia uma jovem ovelha. Era coxa, mas estava perfeitamente cevada. O pastor colocou-a aos ombros, dirigiu-se ao vigia e disse-lhe:
—Obrigado, amigo, por cuidar do meu rebanho! Eis aqui uma ovelha, em retribuição ao teu serviço.
É evidente que o vigia nada entendeu do que lhe fora dito. Todavia, quando viu a ovelha manca, gritou energicamente:
— Pouco me importa que a tua ovelha esteja coxa! Como posso saber quem a estropiou? Nunca me aproximei de teu rebanho!
— É verdade que ela é coxa — continuou o pastor, que mal ouvira o que lhe fora dito. — Mas é uma bela ovelha, jovem e gorda. Leva-a, assa-a e come-a com os teus amigos.
— Pelo amor de Deus! — gritou o vigia, furioso. — Repito-te que não quebrei as patas de tua ovelha e que, nem mesmo, eu me acerquei de teu rebanho. Sequer olhei para ele!
Mas como o pastor, sem compreender o que lhe era dito, continuava a segurar a ovelha coxa diante de si, elogiando-a de todas as formas.
Já sem estribeiras, o vigia bateu com um punho no pastor. Este, por sua vez, enfurecido, preparou-se a defender-se e, provavelmente, teriam lutado, se não tivessem sido impedidos por um homem que passava a cavalo.
Devo dizer-vos que é costume dos indianos, quando discutem sobre qualquer assunto, pedir à primeira pessoa que encontram que proceda a um julgamento. Assim, o pastor e o vigia agarraram, cada um do seu lado, o freio do cavalo para o cavaleiro.
— Faz-me um favor — disse o pastor ao cavaleiro. — Para por um momento e julga. Verifica quem está ou não certo. Eu dei a este homem uma ovelha do meu rebanho como agradecimento pelos seus serviços; mas ele, como agradecimento pelo meu presente, quase me mata.
—Faz-me um favor — disse o outro. — Para um momento e julga. Diz-nos quem tem razão e quem é o culpado. Este pastor malvado me acusa de ter aleijado a sua ovelha, quando eu não me aproximei, sequer, de seu rebanho.
Infelizmente, o juiz que eles escolheram também era surdo, e ainda mais, dizem, do que os dois outros juntos.
Fez um sinal com a mão para que se calassem e disse-lhes:
— Devo confessar-vos que este cavalo não é meu. Eu o encontrei na estrada e, como tenho muita pressa em chegar à cidade por causa de um assunto importante, decidi montá-lo e, assim, chegar prontamente. Se ele é vosso, levai-o; se não, deixai-me ir a toda pressa, eis que não tenho tempo a perder.
O pastor e o vigia não ouviram nada do que lhes fora dito. Mas supuseram que o cavaleiro não decidira em seu favor. Começaram ambos a gritar e a praguejar ainda mais alto, censurando a injustiça do mediador que tinham escolhido.
Nesse ínterim, surgiu na estrada um velho brâmane. Os três litigantes correram para ele e começaram a contar-lhe o seu caso. Mas o brâmane era tão surdo quanto eles.
— Compreendo! Compreendo! — respondeu-lhes. — Ela vos enviou para me pedirem que eu volte para casa (o brâmane falava da sua esposa). Mas não ireis conseguir, pois não há ninguém no mundo mais rabugento do que aquela mulher. Desde que me casei com ela, fez-me cometer tantos pecados que não os consigo lavar nem nas águas sagradas do rio Ganges. Prefiro, pois, alimentar-me de esmolas e passar o resto dos meus dias numa terra estrangeira a estar com ela. Já me decidi com firmeza. As vossas inúmeras súplicas me farão mudar de ideias e aceitar viver de novo na mesma casa com uma mulher tão má.
O barulho era maior do que antes; todos gritavam com todas as suas forças, sem se entenderem uns aos outros.
Entretanto, o que se tinha apossado do cavalo, quando viu que pessoas vinham de longe, a correr, tomou-as pelos donos do cavalo roubado; então, saltou do cavalo e fugiu.
O pastor, apercebendo-se que já se fazia tarde e que o seu rebanho estava completamente disperso, apressou-se em reunir as suas ovelhas e as levou para a aldeia, queixando-se amargamente de que não havia justiça na terra e atribuindo todos os problemas do dia a uma cobra vira, ao sair de casa, rastejando na estrada.
O vigia voltou ao seu pasto e, ao encontrar a ovelha gorda — causa inocente daquela disputa — tomou-a e a levou nos ombros para casa, pensando que assim aplicava um castigo ao pastor por todas as suas ofensas.
O brâmane chegou à aldeia mais próxima, onde parou para passar a noite. A fome e a fadiga haviam-no deixado um tanto cansado. A fome e o cansaço apaziguaram um pouco o seu aborrecimento. Mas, no dia seguinte, os seus amigos e parentes vieram e convenceram o pobre brâmane a voltar para casa, prometendo persuadir a sua mulher rabugenta e fazer-se mais torná-la mais obediente e humilde.
Sabem,
amigos, o que vos pode vir à mente quando lerem esta história?
É
o seguinte: no mundo, há pessoas — grandes e pequenas — que
não são surdas, mas que são piores que os surdos: o que lhe é
dito, não escutam; o que lhes é assegurado, não entendo; quando
se juntam, discutem, sem saber por que motivo. Discutem sem razão,
ofendem-se sem ofensa e queixam-se das pessoas e do destino, ou
atribuem o seu infortúnio a presságios ridículos, como o sal
derramado ou um espelho partido.... Tenho por exemplo um amigo que
nunca ouvia o que o professor lhe dizia na sala de aula e sentava-se
no banco como se fosse surdo. E o que se deu? Cresceu como um parvo:
jamais consegue realizar coisa nenhuma. Os espertos têm pena dele e
os astutos enganam-no; mas ele, como se vê, queixa-se do destino,
dizendo que nasceu azarado.
Fazei-me um favor, amigos, não sejais surdos! Os nossos ouvidos foram-nos dados para ouvir. Um homem inteligente disse que temos dois ouvidos e uma língua, e que, por isso, devemos ouvir mais do que falar.
Versão em português de Paulo Soriano.
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