OS HERÓIS NAVEGADORES - Crônica Classica - Joseph Conrad
OS HERÓIS NAVEGADORES
Joseph Conrad
Tradução de autor anônimo do séc. XX
A geografia é a mais inocente de todas as ciências. Nunca enganou os homens. Quando muito, tirou-os dos seus lares e conduziu-os à morte, ou a um pouco de glória duramente conquistada. O navegador que deu à geografia moderna um novo mundo foi carregado de grilhões e metido numa prisão.
Cristóvão Colombo, o inditoso navegante, destaca-se como uma figura patética, uma vítima das imperfeições e invejas do coração humano. Foi grande como um rei nos sofrimentos e nas honrarias.
A sua contribuição para o conhecimento da Terra foi considerável. O descobrimento da América deu origem à maior expressão de cobiça e crueldade que a história regista, ocasionada pelo ouro do México e do Peru.
Talvez isto não mostre um coração piedoso, mas devo confessar que sinto um malicioso prazer ao pensar nas decepções que sofreram os obstinados buscadores do Eldorado, escalando montanhas, abrindo caminho pelas florestas virgens, atravessando rios, enterrando-se nos pântanos, sempre atrás de metais preciosos, sem nunca dedicarem um pensamento a qualquer ideia nobre.
Os conhecimentos geográficos do nosso tempo teriam sido inconcebíveis para os companheiros e Cortez e Pizarro, e para aquele bom conquistador que foi Dom Álvaro Nuñez Cabeza de Vaca, homem generoso, que tratou humanamente os aborígenes idólatras, cuja memória já desapareceu da terra, enquanto que essa terra, que eles não podiam levar, é hoje atravessada por muitas linhas de caminho de ferro.
O descobrimento do Novo Mundo marcou o fim da geografia fabulosa. A história da conquista encerra um momento excepcional, quando Vasco Nuñez de Balboa pôs pela primeira vez os olhos, ao atravessar o Istmo do Panamá, ao oceano cuja imensidade não suspeitava, e ao qual chamou Pacífico no transbordamento do seu entusiasmo.
Esse oceano não tem nada de pacífico, mas não se pode censurar o privilegiado explorador por ter cedido ao seu primeiro impulso.
O Golfo do Panamá, que foi o que na realidade ele viu, é um dos lugares do globo que têm as águas mais tranquilas. Demasiadamente tranquilas. Os antigos navegadores temiam-no como uma região perigosa, onde o barco não podia mover-se para diante nem para trás por falta de vento, e assim durante semanas inteiras, enquanto a tripulação morria de sede debaixo dum céu sem nuvens.
É a pior coisa que pode acontecer a um homem, sentir-se morrer numa longa e inevitável agonia. Quanto melhor é uma região de tempestades, onde o homem e o barco podem lutar, pelo menos, e continuar até ao fim em posição de desafio!
Não quero dizer que uma tempestade no meio do mar seja uma coisa deliciosa; mas prefiro fazer frente à mais dura tormenta a ter de encarar um golfo sereno até a imobilidade absoluta, prisão das caravelas desprevenidas e lugar de torturas para as suas tripulações. O caso, porém, é que Balboa se sentiu encantado com aquele tranquilo aspecto. Não sabia onde estava. Julgava-se, provavelmente, a pouca distância das Índias ou da China. Contudo, aquele momento excepcional da sua vida acrescentou milhares de quilômetros à circunferência da Terra, abriu um teatro imenso para o drama humano da aventura e da exploração, um campo ilimitado para a ação dos missionários, e estendeu uma tela enorme em que alguns geógrafos podiam pintar, como fizeram, as mais caprichosas variantes da sua teoria predileta acerca de um grande continente austral.
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O que me surpreende é que todos os marinheiros daquele tempo acreditavam, na realidade, que os grandes continentes ao norte do equador deviam ser contrabalançados por uma massa de terra correspondente no hemisfério austral. Eram almas simples. O coro dos homens, cantando todos a mesma toada, tornou-os cegos à visão do grande mar aberto. Cada novo pedaço de costa, cada cume de montanha divisado ao longe, era incorporado ao esquema da Terra Austral Incógnita.
Até mesmo Tasman, o melhor navegador que houve antes de James Cock, depois de encontrar inesperadamente a ilha do norte da Nova Zelândia, e de permanecer ali o tempo necessário para levantar o traçado da sua costa e perder uma canoa de tripulantes numa súbita peleja com os maoris, que, segundo dizem, os assaram vivos e os comeram à vista dos outros brancos debruçados na amurada do navio, julgou que era esse o limite ocidental de um enorme continente que se estendia até ao extremo da América do Sul.
O poder de uma teoria é muito grande quando ela é abonada por uma noção de senso comum, como a do equilíbrio dos continentes. Deve-se recordar que é difícil compreender, agora, os perigos dos mares desconhecidos e as terríveis incertezas geográficas dos primeiros exploradores daquele mundo novo. O diário de Tasman, que foi publicado há pouco, dá-nos uma ideia das dificuldades que o deixavam perplexo. Os primeiros navegadores não tinham nenhum meio de estabelecer a sua posição exata no globo. Podiam calcular a latitude, mas o problema da longitude torturava os seus espíritos e fazia-os incorrer era erros fatais.
Quando Tasman e os seus oficiais realizaram uma conferência a bordo do “Heemskirk”, ancorado na Baía dos Assassinos, para considerar, à luz dos seus conhecimentos, o curso que deviam seguir, não sabiam onde se encontravam os lugares problemáticos citados nas ordens escritas que haviam recebido, nem onde eles próprios estavam.
Tasman podia ter-se dirigido para o norte ou para o leste; mas, afinal, resolveu escolher a direção intermédia e, dando volta, regressou à Batávia, onde foi recebido friamente pelo honorável governador e pelos senhores conselheiros, os quais declararam que ele era um marinheiro inexperiente, que se mostrara “lerdo” nas suas investigações, e que era culpado de ter deixado sem solução um grande número de problemas.
Tasman não esperava essa crítica. Naquela viagem descobrira a ilha pela qual o seu nome se perpetuou nos mapas, tocara na Nova Zelândia, que não havia de ser redescoberta senão cento e trinta anos depois, e cruzara milhares e milhares de quilômetros de águas incógnitas, trazendo um diário que foi de grande valor para os exploradores seguintes.
“Lerdo” ou não, Tasman traçou a carta de oito mil milhas de uma ilha que hoje se chama continente, e na qual se estabeleceu um estado novo, com grandes possibilidades de progresso material e moral no futuro. Esse Estado é a Austrália.
Também não se pode chamar lerdo ao capitão Cook. “Empresa” se chamou o barco que o levou na sua primeira viagem, como que assinalando o espírito que o animava. “Resolução” se chamou o segundo, como prova da sua qualidade mais notável.
As viagens dos primeiros exploradores tinham sido encorajadas pelo espirito ambicioso, pela ideia do lucro, pelo desejo de grandes negócios, ou da rapina mais ou menos disfarçada com palavras bonitas. Mas as três expedições de Cook foram isentas de manchas dessa natureza. Os seus propósitos não precisavam de ser mascarados. Eram científicos. Os seus feitos mostram com admirável singeleza o exilo duramente conquistado.
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Devemos notar que o século passado foi o século dos exploradores terrestres, incluindo nessa categoria os polares. Marinheiros, homens de ciência, é difícil falar deles sem emoção.
A figura dominante, entre os marinheiros exploradores da primeira metade do século dezenove, é a de Sir John Franklin, cuja fama se deve não só à extensão dos seus conhecimentos, como também ao seu prestigio profissional e ao seu caráter digno.
Esse grande navegador, que não devia voltar mais ao seu lar, serviu à geografia depois de morto. Os esforços persistentes, feitos durante mais de dez anos para averiguar a sua sorte, fizeram avançar muito os nossos conhecimentos das regiões polares.
Como se revelou gradualmente ao mundo, esse destino foi singularmente trágico, tanto mais que, nos dois primeiros anos a expedição do “Erebus” e do “Terror” — assim se chamavam os dois navios —, pareceu seguir o desejado caminho do êxito, quando, na realidade, caminhava para a morte, para o final do maior drama representado atrás da cortina do mistério ártico.
As últimas palavras que desvendaram o enigma foram entregues ao mundo por Sir Leopold McClintock, num sensacional e interessante livro intitulado “A viagem do ‘Fox’ ao Oceano Ártico”.
É um livro pequeno, mas encerra com muita simplicidade o termo horripilante de um comovente relato. Eu nasci precisamente no ano da sua publicação, pelo que ele não chegou ao meu conhecimento senão dez anos depois; mas, de então para cá, li livro infinitas vezes. Contém, entre outras coisas, um precioso mapa impresso com o sumário do percurso dos dois navios, o nome de “Sir John Franklin, comandante da expedição” escrito a tinta, e as duas palavras sublinhadas: “Tudo bem”.
Este documento foi encontrado por Sir Leopold MacClintock numa cabana, e estava datado de um ano antes de os barcos terem de ser abandonados na ratoeira de gelo em que foram aprisionados, começando para os seus tripulantes a longa, desesperada e infrutífera luta pela vida.
A história de Franklin não poderia ser mais emocionante. Nasceu cm 1786, na Inglaterra. Aos quatorze anos, ingressou na marinha de guerra e, em 1801, tomou parte no bombardeamento de Copenhague. Em 1803 acompanhou Matheus Flinders na sua expedição aos mares austrais e, depois, seguiu o tenente Fowler à China.
Em 1819, por ordem do governo, empreendeu a exploração das costas da América do Norte.
Franklin partiu da feitoria de York, na baía de Hudson, e chegou ao rio Coopermine julho de 1821, percorrendo aquela costa numa extensão de 5.550 milhas, entre fadigas e perigos extraordinários, não sendo dos menores a fome e o frio. Depois de perder a maior parte de seus companheiros, conseguiu regressar a York a 14 de junho de 1822.
As lúgubres recordações que conservara daquela viagem não o impediram de empreender outra ao Polo Norte em 1825. Em1845, solicitou o comando de uma nova expedição ao Polo, e como o chefe do Almirantado lhe fizesse certas observações acerra da sua idade, dizendo que aos sessenta anos já era preciso pensar no repouso, Franklin respondeu que tinha apenas cinquenta e nove e obteve os navios “Erebus” e “Terror”, sob o comando dos capitães Crozier e Fitzjames e tripulados por 138 homens.
A expedição saiu do Tâmisa a 18 de maio de 1845 e a 26 de julho foi vista à entrada do estreito de Lancaster. Desde aí, não tornou a haver notícias dos exploradores, o que causou a maior inquietação na Inglaterra.
Em 1854, o Dr. Rau soube, pelos esquimós, que alguns dos expedicionários tinham sido vistos ao longo da Terra do Rei Guilherme e mostraram-lhe vários objetos que tinham pertencido a Franklin e Crozier.
Finalmente, a 25 de maio de 1859, MacClintock descobriu o mencionado escrito de Crozier e Fitzjames, datado de 25 de abril de 1848, no qual diziam, também, que a 22 do mesmo mês tinham sido obrigados a abandonar os dois navios, bloqueados pelos gelos, e que Franklin morrera a 11 de junho de 1847.
Quanto aos sobreviventes da expedição de Franklin, em número de 105, tentaram chegar até o rio Fish, mas não puderam resistir ao clima. Por falta de alimentos, os últimos cinco tiveram de deitar sortes, a fim de saber qual devia sacrificar-se para que os companheiros não morressem de fome.
Fonte: A Cigarra/SP, edição de janeiro de 1938.
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