APOSTASIA - Conto - Paulo Soriano

APOSTASIA

Paulo Soriano



Com o coração afogado em angústias, o noviço Eldrictch correu à cela do sábio frade MacAllister — cujos olhos, de tão velhos e cansados, já não filtravam a luz — e lhe disse:

Frade, preciso de teu auxílio.

Senta-te — disse o frei. — O que te apavora?

Ontem, na cidade, morreram dois homens. Um deles será dignamente sepultado em nosso convento; o outro ganhará uma cova rasa no campo inculto reservado aos hereges e suicidas…

Continue.

Conheço ambos os homens — disse Eldrictch. — O mais velho era um homem de coração puro. Talvez o homem mais bondoso, mais caridoso, que já conheci. Ia, toda semana, à gruta dos lazarentos, matava-lhes a sede, limpava-lhes as feridas e alimentava-os com pão quente e peixe fresco. Mas, agora que está morto, temo que os enfermos aguardem o mesmo fatal destino, porque ninguém se ateve a aproximar-se deles. Não havia necessitado a quem esse homem não socorresse. Os desvalidos iam, todos os dias, à sua casa e de lá saíam alimentados — de corpo e de espírito —, porque, além do pão, o homem lhes dava esperança e conselhos edificantes. Certa feita, com a sua oratória impecável e senso incomum de justiça, impediu que os magistrados mandassem à forca um homem cuja inocência ele, corajosamente, se incumbiu de provar. E nada recebeu por isto. Outra, em Edimburgo, impediu que atirassem à vala comum, sem sacramentos, uma jovem mulher que fora assassinada por seu cafetão. Deu-lhe féretro de carvalho e um sepulcro decente. E muitas outras coisas admiráveis fez esse homem…

E quanto ao outro?



Ah, frei MacAllister! Esse era uma víbora! Um grande embusteiro! Passou a vida explorando os endividados, porque não era ele apenas um vigarista, senão um impiedoso agiota. Quantos não tiraram a própria vida por não suportarem as ameaças do inclemente usurário? Ganancioso, ardiloso e beberrão, eis o que era ele! Belo, alegre, fanfarrão, a todos encantava e, graças ao seu carisma, a todos arruinava. E quantas mulheres, jovens e delicadas, levara à ruína e à prostituição? Insensível, frio, calculista… Um demônio na terra! Diz-me, frade: o que crês que mereça, por seu caráter e por suas obras, cada um desses homens?

Decerto que o homem digno merece o Paraíso; o outro, as labaredas do Inferno. Mas o que te consome, filho?

O bom homem, frade, não cria em Deus; assim, morreu sem receber os santos sacramentos. O mau homem, à beira da morte, chamou por cautela um padre, confessou e recebeu a extrema unção. Ao primeiro, homem probo, a nossa fé impõe o Inferno; quanto ao segundo, o facínora, aguarda-o o Paraíso. Frei, isto é justo?

Eldrictch viu que duas lágrimas escorriam dos olhos obnubilados do velho homem.

O cego rasgou as vestes, apanhou o cajado, mergulhou na noite e nunca mais foi visto no antigo e respeitado convento escocês…


Conto originalmente publicado na “Folha de Ponte Nova”/MG, edição de 22 de novembro de 2024.

Ilustrações: PS/Copilot.

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