À TONA D'ÁGUA - Conto - Raul Pompeia

À TONA D'ÁGUA

(Microscópica)

Raul Pompeia

(1863 – 1895)



I


Há crepúsculos que parecem desmaios. Olha-se para cima e vê-se o firmamento pálido; o ocidente apresenta a expressão vaga do olhar da criança que se faz mulher e que sofre a transição. Parece que uma nota de espanto percorre a natureza… Segue-se depois a noite, a escuridão, o desfalecimento da luz.

A alma compreende que a noite é uma ausência. Vai além: apalpa esta ausência. É deleitoso. Tem-se os olhos abertos e sonha-se. Os espetáculos são panoramas de fumaça; e sempre nessa confusão de escuros e meias sombras, destaca-se um ponto. Quem vê este ponto é o coração. Perguntem-no aos amantes.

Rosália estava vendo um crepúsculo assim; e esperava ansiosa pela noite… à praia.


II


Resvala a canoa, macio como a nuvem à flor do céu… Rosália já está com ele. Só quem os vê é a noite. O remeiro canta distraído uma barcarola por trás do estofo que os encobre. E vão…


III


Trocam olhares que os prendem como elos de doces cadeias. Apertam-se as mãos e sentem que possuem alguma coisa de comum que lhes circula pelo corpo deliciosamente. Parece-lhes que possuem o mesmo sangue, porque possuem o mesmo fogo, vivificando a dormência que os acalenta. São dois que se amam de um só amor; mas conhecem-no apenas, porque se sabem amantes e o amor exige duplicidade.


IV


A quilha do barquinho rasga sem ruído a toalha alisada do mar e os gravetos flutuantes vão lhe ficando na esteira. Por essa hora, vai a imergir no ocaso um estilhaço de lua que dissolve ainda pelas trevas uma claridade morta. Rosália vê à proa do barco uma pequena lâmina. Vê não exprime bem. Os olhos passam pelo objeto e não atentam. Mas a canoa vai e vai…

Rosália foge à casa paterna, nos braços do amante.


V


Pela segunda vez depara com o ferro; mas agora com atenção. Aquele aço não brilha, entretanto cai sobre ele o luar. A jovem estende languidamente a mão e o segura. Violento palpita-lhe o coração.

Pressentimento… Ela fita profundamente o semblante amoroso do companheiro e murmura:

—Sangue?!…

O mancebo faz um movimento brusco. A canoa estremece. O remeiro vai cantando…

O moço, que se afastara da jovem, pega-lhe nervosamente nos formosos braços, apenas velados por brandos filós e diz-lhe, com os dentes cerrados, fora de si:

—Teu pai vinha matar-te, desgraçada!

E Rosália atira-se sobre ele e solta um grito de furor:

— Assassino, eu te amo!


Fonte: “O Mequetrefe”/RJ, edição de 6 de janeiro de 1885.

Ilustração: James Tissot (1836 – 1902)

 

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