VIVO E MORTO - Crônica - Autor anônimo do início do séc. XX
VIVO E MORTO
Autor anônimo do início do séc. XX
Em 1870, Lucien Grattery era soldado do 4º regimento de zuavos, em França. No combate de Bry-sur-Marne, lançou-se sobre os prussianos com um tal furor que recebeu um tiro em pleno peito; o projétil varou-o de um lado a outro, fazendo enormes estragos nos principais órgãos, atravessando-lhe o pulmão esquerdo.
Mas há homens de sorte. Lucien Gratterv, transportado para o hospital de sangue, não morreu; o pulmão cicatrizou, e restabelecido, Gratterv teve baixa, retirando-se para o lar de sua família. Começou então a pensar numa condecoração.
Em França, como em toda a parte, quando se tem direito e se quer uma medalha, é preciso um mundo de papéis. Lucien Grattery necessitou de cópia da sua fé de ofício. Para a obter, escreveu ao ministro da guerra, o qual não respondeu porque tinha mais que fazer.
Felizmente, os ministros passam. Assim sucedeu com Crattery; depois do combate de Bry-sur-Marne, até hoje, houve em França cinquenta e sete ministros da guerra. Cada um deles recebeu mais de uma carta do soldado Lucien, que jamais se cansou de escrever cartas, sem perder a esperança.
A 17 de agosto do ano passado, precisamente no dia em que fazia sessenta e três anos, Lucien Granery viu entrar em sua casa dois gendarmes, portadores de uma carta do general Picquart, ministro da guerra. Era o ministro que respondia. Mas com que data? De cinco de junho. Só lhe chegava as mãos com dois meses e doze dias de demora. Todo aquele tempo porque a carta correra brigada por brigada.
O nobre soldado, meio estupefato, abriu a carta e leu:
“Por ordem do ministro da guerra, o chefe do serviço interno certifica que, nos registros, matrículas e mais papeis existentes no arquivo da guerra, foi extraído o seguinte:— Grattery (François-Raphaël-Lucien), natural de Etampes, nascido a 13 de abril de 1844. Falecido em virtude de uma bala que o atravessou no combate de Bry-sur-Marme a 30 de novembro de 1870”.
Lucien ficou alguns minutos perplexo ante aquela escabrosa notícia.
Um dos gendarmes interrompeu o silêncio, observando-lhe:
—Faça favor de assinar o recibo.
—Que recibo? —perguntou Lucien Gratterv.
—Um recibo constando que lhe entregamos esta carta.
—Não posso assinar recibo — respondeu Grattery —porque defuntos não têm o costume de assinar recibos.
Um dos gendarmes observou-lhe:
—Deixe-se disso; o Sr. está morto e bem morto; assine: isto é uma simples formalidade.
E o velho soldado assinou, ficando assim o ministro da guerra em França senhor de um documento provando que Lucien Grattery, morto em 30 de novembro de 1870, no combate de Bry-sur-Marne, recebeu uma carta de 17 de agosto de 1907 e assinou o respectivo recibo.
Fonte: Jornal do Commercio/AM, edição de 21 de fevereiro de 1909.
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