AOS VINTE ANOS - Conto Humorístico - Aluísio Azevedo
AOS VINTE ANOS
Aluísio Azevedo
(1857 – 1913)
Abri minha janela sobre a chácara. Um bom cheiro de resedás e laranjeiras entrou-me pelo quarto, de camaradagem com o sol, tão confundidos que parecia que era o sol que estava recendendo daquele modo. Vinham ébrios de abril. Os canteiros riam pela boca vermelha das rosas; as verduras cantavam, e a república das asas papeava, saltitando, em conflito com a república das folhas. Borboletas doidejavam, como pétalas vivas de flores animadas que se desprendessem da haste.
Tomei a minha xícara de café quente e acendi um cigarro, disposto à leitura dos jornais do dia. Mas, ao levantar os olhos para certo lado da vizinhança, dei com os de alguém que me fitava; fiz com a cabeça um cumprimento quase involuntário e fui deste bem pago, porque recebi outro com os juros de um sorriso; e, ou porque aquele sorriso era fresco e perfumado como a manhã daquele abril, ou porque aquela manhã era alegre e animadora como o sorriso que desabotoou nos lábios da minha vizinha, o certo foi que neste dia escrevi os meus melhores versos e no seguinte conversei a respeito destes com a pessoa que os inspirou.
Chamava-se Ester e era bonita. Delgada sem ser magra; morena, sem ser trigueira; afável, sem ser vulgar; uns olhos que falavam todos os caprichosos dialetos da ternura; uma boquinha que era um beijo feito de duas pétalas; uns dentes melhores que as joias mais valiosas de Golconda; cabelos mais lindos do que aqueles com que Eva escondeu o seu primeiro pudor no paraíso.
Fiquei fascinado. Ester enleou-me todo nas teias da sua formosura, penetrando-me até ao fundo da alma com os irresistíveis tentáculos dos seus dezesseis anos. Desde então conversamos todos os dias, de janela contra janela. Disse-me que era solteira e eu jurei que seríamos um do outro. Perguntei-lhe uma vez se me amava, e ela, sorrindo, atirou-me com um bogari que nesse momento trazia pendente dos lábios.
Ai! Sonhei com a minha Ester, bonita e pura, noites e noites seguidas. Idealizei toda uma existência de felicidade ao lado daquela meiga criatura adorável, até que um dia, já não podendo resistir ao desejo de vê-la mais de perto, aproveitei-me de uma casa à sua contígua, que estava para alugar, e consegui, galgando o muro do terraço, cair-lhe aos pés, humilde e apaixonado.
—Ui! Que veio o senhor fazer aqui? — perguntou-me trêmula, empalidecendo.
—Dizer-te que te amo loucamente e que não sei continuar a viver sem ti! Suplicar-te que me apresente a quem devo pedir a tua mão e que marques um dia para o casamento, ou então que me emprestes um revólver e me deixes meter aqui mesmo duas balas nos miolos!
Ela, em vez de responder, tratou de tirar-se do meu alcance e fugiu para a porta do terraço.
— Então?… Nada respondes?… — inquiri no fim de alguns instantes.
— Vá-se embora, criatura!
— Não me amas?
— Não digo que não. Ao contrário, o senhor é o primeiro rapaz de quem eu gosto, mas vá-se embora, por amor de Deus!
— Quem dispõe de tua mão?
— Quem dispõe de mim é meu tutor.
— Onde está ele? Quem é? Como se chama?
— Chama-se José Bento Furtado. É capitalista, comendador, e deve estar agora na praça do comércio.
— Preciso falar-lhe.
— Se é para pedir-me em casamento, declaro-lhe que perde o seu tempo.
— Por quê?
— Meu tutor não quer que eu case antes dos vinte anos e já decidiu com quem há de ser.
— Já? Com quem é?
—Com ele mesmo.
— Com ele? Oh! E que idade tem seu tutor?
—Cinquenta anos.
— Jesus! E a senhora consente?
— Que remédio! Sou órfã, sabe? De pai e mãe. Teria ficado ao desamparo desde pequenina se não fosse aquele santo homem.
— É seu parente?
—Não, é meu benfeitor.
— E a senhora ama-o?
— Como filha, sou louca por ele.
— Mas esse amor, longe de satisfazer a um noivo, é pelo contrário um sério obstáculo para o casamento… A senhora vai fazer a sua desgraça e a do pobre homem!
— Ora! O outro amor virá depois.
— Duvido!
—Virá à força de dedicação por parte dele e de reconhecimento por minha parte.
—Acho tudo isso imoral e ridículo, permita que lho diga!
— Não estamos de acordo.
— E se eu me entender com ele? Se lhe pedir que me dê, suplicar, de joelhos, se preciso for?… Pode ser que o homem, bom como a senhora diz que é, se compadeça de mim, ou de nós, e…
— É inútil! Ele só tem uma preocupação na vida: ser meu marido!
— Fujamos então!
—Deus me livre! Estou certa de que com isso causaria a morte do meu benfeitor!
—Devo, nesse caso, perder todas as esperanças?
— Não! Deve esperar com paciência. Pode bem ser que ele mude ainda de ideia, ou — quem sabe? —pode ser que morra antes de realizar o seu projeto.
— E acha a senhora que esperarei — sabe Deus por quanto tempo! — sem sucumbir à violência da minha paixão?
—O verdadeiro amor a tudo resiste, quando mais ao tempo! Tenha fé e constância, é só o que lhe digo. E adeus!
— Pois adeus!
— Não vale zangar-se. Trepe de novo ao muro e retire-se. Vou buscar-lhe uma cadeira.
— Obrigado. Não é preciso. Faço todo o gosto em cair, se me escorregar a mão! Quem me dera até que morresse da queda, aqui mesmo!
— Deixe-se de tolices! Vá!
Saí; saí ridiculamente, trepando-me pelo muro, como um macaco, e levando o desalento no coração. Ah! Maldito tutor dos diabos! Velho gaiteiro e libertino! Ignóbil maluco, que acabava de transformar em fel todo o encanto e toda a poesia da minha existência! A vontade que eu sentia era de matá-lo, era de vingar-me ferozmente da terrível agonia que aquele monstro me ferrara no coração!
— Mas não as perdes, miserável! Deixa estar! —prometia eu com os meus botões.
Não pude comer, nem dormir, durante muitos dias. Entretanto, a minha adorável vizinha falava-me sempre, sorria-me, atirava-me flores, recitava os meus versos e conversava-me sobre o nosso amor. Eu estava cada vez mais apaixonado.
Resolvi destruir o obstáculo da minha felicidade. Resolvi dar cabo do tutor de Ester.
Já o conhecia de vista: muita vez encontramo-nos à volta do espetáculo, em caminho de casa. Ora, a rua em que habitava o miserável era escusa e sombria… Não havia que hesitar: comprei um revólver de seis tiros e as competentes balas.
— E há de ser amanhã mesmo! — jurei comigo.
E deliberei passar o resto desse dia a familiarizar-me com a arma no fundo da chácara; mas, logo às primeiras detonações, os vizinhos protestaram. Interveio a polícia e eu tive de resignar-me a tomar um bode da Tijuca e ir continuar o meu sinistro exercício no hotel Jordão.
Ficou, pois, transferido o terrível desígnio para mais tarde. Eram alguns dias de vida que eu concedia ao desgraçado.
No fim de uma semana, estava apto a disparar sem receio de perder a pontaria. Voltei para o meu cômodo de rapaz solteiro; acendi um charuto, estirei-me no canapé e dispus-me a esperar pela hora.
— Mas — pensei já à noite — quem sabe se Ester não exagerou a coisa?… Ela é um pouquinho imaginosa… Pode ser que, se eu falasse ao tutor de certo modo… Hein? Sim! É bem possível que o homem se convencesse e… Em todo o caso — que diabo! — nada perderia eu em tentar!… Seria até muito digno de minha parte… Está dito! — resolvi, enterrando a cabeça entre os travesseiros. — Amanhã procuro-o; faço-lhe o pedido com todas as formalidades. Se o estúpido negar, insisto, falo, discuto; e, se ele, ainda assim, não ceder, então bem, zás! Morreu! Acabou-se!
No dia imediato, de casaca e gravata branca, entrava eu na sala de visitas do meu homem.
Era domingo e, apesar de uma hora da tarde, ouvi barulho de louça lá dentro.
Mandei o meu cartão. Meia hora depois apareceu-me o velhote, de rodaque branco, chinelas, sem colete, palitando os dentes.
A gravidade do meu trajo desconcertou-o um tanto. Pediu-me desculpa por me receber tão à frescata, ofereceu-me uma cadeira e perguntou-me ao que devia a honra daquela visita. Que, lhe parecia, tratava-se de coisa séria…
— Do que há de mais sério, senhor comendador Furtado! Trata-se da minha felicidade! Do meu futuro! Trata-se da minha própria vida!
— Tenha a bondade de pôr os pontos nos ii.
—Venho pedir-lhe a mão de sua filha.
— Filha?
— Quer dizer: sua pupila.
— Pupila?!
—Sim, sua adorável pupila, a quem amo, a quem idolatro e por quem sou correspondido com igual ardor. Se ela não o declarou ainda a V.Sa. é porque receia com isso contrariá-lo. Creia, porém, senhor comendador, que…
— Mas, perdão, eu não tenho pupila nenhuma!
—Como?! E dona Ester?
— Ester?!
— Sim! A encantadora, a minha divina Ester! Ah! Ei-la! É essa que aí chega! —exclamei, vendo que a minha estremecida vizinha surgiu na saleta contígua.
— Esta?! — balbuciou o comendador, quando ela entrou na sala. — Mas esta é minha mulher!
Fontes: “Almanak Litterario e Estatistico do Rio Grande do Sul para 1896”/RS, Editores Carlos Pinto & Comp. 1895; “O Fluminense”/RJ, edição de 17 de junho de 1898; “Gazeta de Petrópolis”/RJ, edição de 6 de novembro de 1897.
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