A FELICIDADE - Conto - Guy de Maupassant
A FELICIDADE
Guy de Maupassant
Tradução de autor desconhecido do séc. XIX
Era a hora do chá, antes de acender as luzes. A chácara dominava o mar; o Sol, desaparecido, roseara o céu com a sua passagem, esparzindo pelo caminho uma poeira de ouro, e o Mediterrâneo, sem uma ruga, sem um frêmito, liso, luzidio ainda ao entardecer, parecia uma imensa placa de metal polido.
Ao longe, à direita, montanhas pontiagudas desenhavam o negro perfil sobre a púrpura pálida do oceano.
Falava-se de amor, discutia-se este velho assunto, repetiam-se frases já ditas muitas vezes. A morna melancolia do crepúsculo suavizava as palavras, enternecia as almas, e esta palavra—amor—que vinha sem cessar, ora pronunciada por uma voz forte de homem, ora suspirada por uma voz de mulher, de timbre ligeiro, parecia encher o pequeno salão, voltear nele como um pássaro e plainar como um espírito.
Pode-se amar muitos anos em seguida?
—Sim — pretendiam uns.
—Não — afirmavam outros.
Distinguiam-se casos, estabeleciam-se limites, citavam-se exemplos. E todos, homens e mulheres, cheios de recordações que lhes vinham à mente, perturbando-os, que lhes subiam aos lábios e que não podiam citar, pareciam comovidos, falavam deste assunto banal e soberano, o terno e misterioso acordo de dois seres, com uma emoção profunda e um interesse ardente.
Mas, de repente, alguém, tendo os olhos fitos ao longe, exclamou:
—Oh! Vejam, lá em baixo. O que é aquilo?
Do mar, no fundo do horizonte, surgia uma massa pardacenta, enorme, confusa. As mulheres tinham-se levantado e olhavam, sem compreender, para aquele fenômeno extraordinário que jamais tinham observado.
Alguém disse:
— É a Córsega! Avistamo-la assim, duas ou três vezes por ano, em certas condições excepcionais da atmosfera, quando o ar, duma limpidez perfeita, não encobre com essas brumas de vapor que velam sempre as longitudes.
Vagamente se distinguiam os montes e julgou-se descobrir a neve sobre eles. E todos se sentiam perturbados, quase atemorizados, por esta branca aparição de um mundo, por este fantasma saído do mar. Talvez tivessem destas visões estranhas aqueles que partiram como Colombo, através dos oceanos inexplorados.
Então, um velho, que ainda não havia falado, disse:
—Esperem. Encontrei nessa ilha, que agora se ergue diante de nós, como para responder aquilo que discutimos e me trazer uma singular recordação, encontrei um exemplo admirável dum amor constante, dum amor extraordinariamente feliz.
Ei-lo.
*
Fiz, há cinco anos, uma viagem à Córsega. Esta ilha selvagem é mais desconhecida e está mais longe de nós do que a América, embora avistemo-la algumas vezes das costas de França, como hoje.
Imaginem um mundo ainda em formação, uma aluvião de montanhas a separarem quebradas onde se precipitam torrentes; nenhuma planície: só imensas porções de granito e gigantes ondulações de terra cobertas de mato, altas florestas de castanheiras e pinho. É um solo virgem, inculto, deserto, se bem que às vezes avista-se uma aldeia, qual um grupo de rochedos do alto dum monte. Nenhuma criatura, nenhuma indústria, nenhuma arte. Não se encontra nunca um pedaço de bosque trabalhado, um canto de pedra esculpido, uma lembrança do gosto primitivo ou apurado dos antepassados pelas coisas belas e graciosas. E é isso mesmo o que mais impressiona nesse soberbo país selvagem: a indiferença hereditária por esta investigação das formas sedutoras, que se chama A Arte.
A Itália, onde cada palácio, cheio de obras-primas, é, por seu turno, uma obra-prima, onde o mármore, a madeira, o bronze, o forro, os metais, as pedras atestam o gênio do homem, onde os mais insignificantes objetos artísticos existentes nas velhas casas revelam esta divina preocupação da graça, é para todos nós a pátria sagrada que amamos, porque ela nos mostra e nos prova o esforço, a grandeza, o triunfo e o poder da inteligência criadora.
E, em face dela, a Córsega selvagem permanece tal como em seus primeiros dias. O homem ali vive numa casa tosca, indiferente a tudo o que não diz respeito à existência ou às questões de família. E possui todos os defeitos e qualidades das raças incultas; o impetuoso, odiento, sanguinário com inconsciência, mas também hospitaleiro, generoso, dedicado e ingênuo, abrindo a porta aos que passam e retribuindo com amizade fiel e menor sinal de simpatia.
Havia um mês que eu errava através dessa ilha magnífica, com a sensação de que estava no fim do mundo. Nem estalagens, nem tabernas, nem estradas. Chega-se por meio de atalhos de rebanhos às aldeias suspensas, ao flanco montanhas, que dominam abismos tortuosos, donde se ouve subir, à noite, o ruído contínuo, a voz surda e profunda da torrente. Bate-se duas vezes às portas das casas. Pede-se um abrigo para a noite e que viver até o dia seguinte. E senta-se à modesta mesa e dorme-se debaixo do teto humilde; e, pela manhã, aperta-se a mão estendida do hóspede que nos acompanha até os limites da aldeia.
Ora, uma tarde, após dez horas de marcha, cheguei a uma pequena casa sozinha no fundo dum estreito vale, que ia ter ao mar uma légua adiante. As duas encostas, muito inclinadas, da montanha, cobertas de mato, de penhascos arruinados e de grandes árvores, encerravam, quais duas sombrias muralhas, essa barraca profundamente triste.
Em volta da cabana, algumas vides, um pequeno jardim e, mais longe, alguns grandes castanheiros, de que viver, enfim, uma fortuna nesse pobre país.
A mulher quo me recebeu ora velha, severa, distinta, por exceção. O homem, sentado sobre uma cadeira de palha, levantou-se para me saudar; depois, tornou a sentar-se sem dizer uma palavra. A companheira me disse:
—Desculpe-o. É surdo. Tem oitenta o dois anos.
Falava o francês da França. Surpreendi-me.
Perguntei-lhe:
— É da Córsega?
Respondeu:
—Não; sumos continentais. Mas há cinquenta anos que moramos aqui.
Uma sensação da angústia e de medo se apoderou do mim ao pensar nesses cinquenta anos decorridos nesse casebre sombrio, tão longe das cidades onde vivem os homens. Um velho pastor entrou e começou a comer o único prato do jantar, uma sopa grossa em que também havia cozido, batatas, toucinho e couve.
Quando a curta refeição terminou, fui-me sentar diante da porta, com o coração cerrado pela melancolia da triste paisagem, por essa angústia que assalta às vezes os viajantes em certos lugares tristonhos e desolados. Parece que tudo vai se acabar, a existência e o universo. Percebe-se, bruscamente, a terrível miséria da vida, o isolamento de todos, o nada de tudo e a triste solidão do espírito, que se embalança e se engana a si mesmo, com devaneios que duram ate a morte.
A velha chegou-se a mim e, torturada por essa curiosidade que vive sempre no fundo das almas mais resignadas, me perguntou:
—Então, vem da França?
— Sim, viajo a prazer.
— É de Paris, talvez?
—Não, sou de Nancy.
Pareceu-me que uma extraordinária emoção a agitava. Como o percebi, ou antes o senti, não o sei.
Ela repetiu em voz lenta:
—É de Nancy?
O homem apareceu na porta, impassível como os surdos.
Ela acrescentou:
—Não é nada. Ele não ouve.
Depois, ao fim de alguns segundos:
—Então, conhece muita gente em Nancy?
—Sim, quase toda agente.
—A família de Sainte-Allaise?
—Perfeitamente; eram amigos de meu pai.
—Como se chama?
Disse o meu nome. Ela me olhou fixamente, depois disse, com aquela voz baixa que despertam as recordações.
—Sim, sim, lembro-me muito bem. E os Brisemares, o que se tornaram eles?
—Todos morreram.
—Ah! E os Sirmont, conhece-os?
—Sim, o último é general.
Então ela disse, trêmula de emoção, de angústia, de não sei que sentimento confuso, poderoso e sagrado, de não sei que de confessar, de dizer tudo, de falar desses assuntos que trouxera encerrados no fundo do coração, e dessas pessoas cujos nomes perturbavam-na.
— Sim. Henri de Sirmont. Conheço-o muito. É meu irmão.
Ergui os olhos, surpreso. E, de repente, a recordação me veio.
Fora, outrora, um grande escândalo na nobre Lorena. Uma moça rica e formosa, Suzanne de Sirmont, tinha sido raptada por um oficial de hussardos do regimento que o pai dela comandava.
Era um belo moço, filho de camponeses, mas em que fica muito bem o uniforme azul, esse soldado que seduziu a filha do coronel. Ela o vira, observara e amara, olhando, sem dúvida, desfilarem os esquadrões. Mas como lhe falara ela, como puderam se ver, se ouvir? Como ousara ela fazer-lhe compreender que o amava? Isso nunca se soube.
Nada se havia adivinhado, nada pressentido.
Uma tarde, como o soldado acabasse de fazer a sua guarda, desapareceu com ela. Procuraram-no muito, mas ninguém os encontrou. Jamais tiveram uma notícia e, afinal, todos a consideravam morta.
E eu a encontrava assim, neste sinistro vale.
Então, repliquei por minha vez:
—Sim, lembro-me perfeitamente. É mademoisele Suzanne.
Ela fez sim, com a cabeça. Lágrimas caiam-lhe dos cílios. Então, mostrando-me com os olhos o velho imóvel no limiar do casebre, disse-me.
—É ele.
E eu compreendi que ela o amava sempre, que ela o via ainda com os olhos seduzidos.
Perguntei:
—Ao menos tem sido feliz?
Respondeu-me com uma voz que vinha do coração:
—Oh, sim! Muito feliz. Ele me tornou perfeitamente feliz. De nada tenho me arrependido.
Eu a contemplava triste, surpreendido, maravilhado pelo poder do amor! Essa moça rica seguira esse homem, esse camponês. Ela própria se tornara uma camponesa. Habituara-se à vida dele, sem encanto, sem luxo, sem delicadeza de espécie alguma; se amoldara aos simples costumes dele. E o amava ainda. Tornara-se a mulher de um rústico, de touca e saia de algodão. Comia num prato de barro sobre uma mesa de pau; sentada numa cadeira de palha, um caldo de ervas e batatas com toucinho. Dormia sobre a palha ao lado dele.
Jamais pensara noutra coisa, senão nele! Nunca desejara joias, nem os estofos, nem moleza nos assentos, nem em a atmosfera perfumada das câmaras, cercadas de armações. Nem a suavidade dos frouxéis em que se mergulham os corpos para o repouso. Jamais mais necessitava senão dele; e, tendo-o ao seu lado, nada mais desejava.
Jovem, abandonara a vida, o mundo, e aqueles que a haviam educado e amado. Viera só com ele para este sítio selvagem. E ele tinha sido para ela tudo o que se deseja, tudo o que se sonha, tudo o que se espera sem cessar, tudo o que se espera sem fim.
Ele enchera de felicidade a existência dela, de uma extremidade a outra.
Ela não podia ter sido mais feliz.
E, durante toda essa noite, escutando o rouco respirar do velho soldado estendido sobre o leito humilde, ao lado daquela que o seguira de tão longe, eu pensava nesta estranha e simples aventura, nesta felicidade tão completa, feita de tão pouco.
*
O narrador se calou. Uma mulher disse:
—É o mesmo; ela possuía um ideal muito fácil, necessidades muito primitivas e exigências muito simples. Não podia deixar de ser uma imbecil.
Uma outra respondeu, com voz lenta.
—Não importa! Ela foi feliz.
E, ao longe, no fundo do horizonte, a Córsega afundava-se na noite, reentrava lentamente no mar, apagava a sua grande sombra, que aparecera como para contar, ela mesma, a história dos dois pobres amantes, que a sua pátria abrigava.
Fonte: “Pacotilha”/MA, edição de 8 de junho de 1888.
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