A VINGANÇA DO PINTOR - Conto Humorístico - Autor anônimo do séc. XIX

A VINGANÇA DO PINTOR

Autor anônimo do séc. XIX

Tradução de autor anônimo do séc. XIX


Há cerca de trinta anos, vivia em Bruxelas o pintor belga Antoine Wiertz1, que conquistara grande renome pela originalidade e perfeição dos seus trabalhos; e estava em moda o fazer-se retratar por ele. Esta graça, porém, não a concedia o pintor a qualquer, senão àqueles tão somente cujas fisionomias pendiam mais para o esquisito e ridículo do que para o belo.

Levado pelo desejo de se fazer imortalizar pelo pincel do artista, foi procurá-lo um dia o mestre Van Spach, tabelião de notas da cidade. Lia-se no rosto enrugado do notário a expressão da astúcia e certo ar de filáucia. Era um dos homens mais ricos de Bruxelas, e tanto tinha de rico como de avarento, o que lhe mereceu a alcunha de mestre Harpagão2.

Conhecia-lhe o pintor o lado fraco; entretanto, sem hesitar, acedeu ao seu pedido. É que a cabeça do velho tabelião, logo à primeira vista, o havia impressionado. A calva, a testa enrugada, as sobrancelhas hirsutas, o nariz adunco, os lábios delgados, em uma palavra, aquela cabeça característica era um verdadeiro tesouro para o nosso artista, que ficou encantado. E, enquanto o escrivão expunha o seu desejo, estava o pintor a gravar na memória, um por um, os traços fisionômicos de seu interlocutor.

— Quanto poderá custar o retrato? — perguntou, por prevenção, o notário.

— Dez mil francos é o preço — respondeu-lhe Wiertz.

O velho avarento caiu das nuvens, encolheu os ombros e, pegando no chapéu, disse secamente:

— Então, até outra vista.

Receando, porém, o artista perder modelo tão prometedor, apressou-se a acrescentar:

— Este é o preço comum; mas, como as suas feições se prestam admiravelmente, não tenho dificuldade em fazer uma exceção em seu favor. Fica-lhe o retrato por cinco mil francos.

Ao sovina tabelião pareceu-lhe ainda demasiado exagerada sua exigência por um pedaço de tela pintada, como ele dizia. Finalmente, depois de muito regatear, acordou em que pagaria trés mil trancos pelo retrato, inclusive a moldura, e, ao despedir-se, perguntou quando se devia efetuar a primeira sessão.

—Não há pressa — tornou-lhe o pintor, que já tinha o retrato bem no espírito. —Tenho entre mãos outro trabalho que preciso acabado o quanto antes. Quando for a ocasião, mandá-lo-ei avisar.

Mal o tabelião deixou a oficina, mete o pintor mãos à obra, e, estendida na grade uma tela nova, toma o pincel e a paleta, e começa a pintar de memória os lineamentos do quadro.

Sabia trabalhar com admirável presteza e, antes de escurecer, tinha o quadro acabado. O nosso notário estava representado de face, sentado à sua mesa de trabalho, coberta de papéis e autos.

A cabeça, magistralmente executada, sobressaía em um fundo escuro. A parecença saltava aos olhos, e dava não só os traços fisionômicos, mas ainda o caráter e expressão do original. Em uma palavra, a tela parecia animada.




No quarto dia, pela manhã, deu o artista a última demão e, guarnecendo o retrato com uma moldura, enviou-a ao notário, recomendando ao portador que esperasse pela resposta.

O nosso pintor esfregava as mãos de contente, imaginando a surpresa e contentamento do velho, e a sensação que o seu trabalho havia de produzir na roda dos artistas seus colegas.

Pouco depois, porém, volta o portador, tendo numa mão o quadro e na outra uma carta concebida nestes termos:


“Meu caro senhor,

Tomo a liberdade de devolver-lhe o seu borrão que julgo não ser o meu retrato, porquanto nenhuma parecença tem comigo. Na arte, como em tudo mais, quero o meu dinheiro bem despendido, e de forma alguma me passa pela mente pagar três mil francos por um trabalho de poucas horas. Como o Sr. julgou não valer a pena retratar-me seriamente, resolvi cortar toda e qualquer transação com o Sr., de quem me subscrevo

Humildemente,

P. v. Spach


Quando o pintor tornou a si da primeira impressão que esta singular carta lhe produziu, não pôde ter mão em si que não soltasse uma estrondosa gargalhada, e exclamou:

— Ah, unha de fome! Desta vez, lograste a ti próprio. Podias vender o quadro pelo quíntuplo do que te custa. Mas deixa-te estar, mestre Harpagão, que este hás de pagá-lo caro. Hei de pregar-te uma boa peça!

E, sem mais demora, senta-se a trabalhar, pega o pincel e a paleta e, em pouco tempo, operou uma completa transformação no quadro. Sem destruir a parecença, mudou o rosto, exagerando-lhe os traços característicos. Os olhos encovados adquiriram um brilho sinistro, os lábios delgados uma curvatura maliciosa, os supercílios insípidos uma expressão ridícula. Uma barba de bode cobria-lhe o queixo, a posição tornou-se encurvada e lassa. Os acessórios do quadro também sofreram radical mudança: o fundo foi convertido em paredes de uma cela com janelas gradeadas; e, em lugar da mesa com papéis e documentos, um mocho debaixo do qual estavam à vista um púcaro d’água e pão.

Concluído o quadro, lançou o pintor a sua assinatura e, na moldura, pregou com caracteres bem visíveis o seguinte dístico: O encarcerado por dívida.

Com o retrato assim transformado, foi à casa de um negociante de objetos de arte e disse-lhe:

—Trago-lhe aqui um trabalho que, a meu ver não é mau. Pode ceder-me um lugar na sua vitrina para expô-lo?

—Lugar para o seu quadro? E ainda o pergunta? — tronou-lhe o negociante. — Da sua mão não saiu ainda, que eu saiba, coisa mais original e bem-acabada. Quanto devo pedir pelo quadro?

— Ainda não resolvi — respondeu o pintor. — Havendo comprador, mande-me aviso.

Imediatamente, foi o retrato colocado no lugar de honra e atraiu logo a atenção dos que passavam. Todo o dia houve grande ajuntamento de curiosos diante da vitrina, no dia imediato ocupavam-se as folhas circunstanciadamente e com aplausos à ultima produção de Wiertz. E novos grupos de espectadores vinham aglomerar-se para ver o retrato. Entre estes últimos, achou-se também um amigo do velho notário. E vendo-o em tão crítica situação, não queria dar crédito aos seus próprios olhos. Em ato contínuo, foi a correr à casa deste, e, pouco após, entrava o notário pela casa do negociante, que logo reconheceu nele o original do quadro exposto.

—Senhor — exclamou ele —, sou vítima de um gracejo de mau gosto de um dos seus fregueses! O retrato que ali está exposto é o meu. O tabelião van Spach desacatado por um pinta-monos! E atado ao pelourinho do vilipêndio! Se o senhor não retirar dali, incontinente, aquele borrão, entender-se-á com a polícia.

O negociante sorriu a esta ameaça, respondendo-lhe mui cortesmente:

— Meu amigo, entenda-se com o dono do quadro. Sem autorização dele, não o posso retirar.

Escumando de raiva, correu o notário à casa do pintor, a quem encontrou refestelado em uma poltrona, a saborear um bom charuto, sendo recebido por ele da maneira mais delicada possível.

—Ah! O senhor por aqui? A que devo a honra e o prazer desta visita? Sem cerimonia, sente-se, e dê-me licença que lhe ofereça um charuto.

O tabelião atalhou estas cortesias dizendo bruscamente:

— Vamos, sem mais delongas, ao que me traz aqui. Em casa de N. está exposto um retrato, uma caricatura que me torna a fábula de toda a cidade. Exijo que o mande retirar já e já. Percebe?

— Não bem — retrucou-lhe o outro, com a maior calma deste mundo. — É verdade que em casa de N. está em exposição um trabalho meu. Não vejo, porém, como isto o possa tornar ridículo aos olhos dos outros.

—Como não, se o retrato é o meu?!

—Seu o retrato?! — perguntou o outro muito admirado.

— Meu, sim! Não há quem não o reconheça à primeira vista.

—Desculpe-me — acudiu o pintor. —Ainda ontem, mandou-me você dizer que o retrato em nada se parecia com a sua pessoa. Aqui está a carta em que o diz.

O notário mordeu os beiços. Estava desarmado.

—Nestas condições — prosseguiu o pintor —, e tendo você de volvido o retrato, entendi que estava no meu direito de dispor dele a meu bel-prazer.

O tabelião passeava de um para o outro lado do gabinete, e, afinal com sorriso amarelo, disse:

—Ora, vamos, acabemos em paz este negócio que já me fede. Pago-lhe os três mil francos e mande retirar incontinente o retrato.

Wiertz meneou a cabeça, respondendo-lhe:

— Meu rico, deve ter compreendido que o retrato, nas condições atuais, vale dez vezes mais do que um simples quadro. É um produto de minha fantasia, é criação minha. E tenho-o na conta de um dos mais bem-sucedidos. Não o posso dar por menos de quinze mil francos…

— Quinze mil francos! — exclamou o avarento. —Quinze mil francos?! Não faltava mais nada! O senhor está a gracejar.

—Não há tal. Este é o preço. Se quiser levar o quadro, leve-o; se não quiser, deixe-o ficar. É como lhe aprouver.

O nosso tabelião estava fulo de raiva.

— Então fique-se com ele! — bradou e saiu.

Não tinha, porém, chegado muito longe, quando voltou sobre os seus passos, dizendo com os seus botões: “Se o maldito quadro continua exposto, não me posso deixar ver mais em parte alguma”.

Não havia remédio. Era fazer de uma necessidade uma virtude.

—Wiertz — disse ele, quando de novo se achou na presença do pintor —, refleti melhor. Aceito as suas condições. Estou resolvido a levar o quadro pelos quinze mil francos.

— É muita bondade sua — respondeu-lhe o artista. — Mas também eu estive a pensar e acudiu-me uma ideia felicíssima.

O pobre do notário estava em talas. Estremeceu todo, receando algum novo desastre.

—Que é, então? —perguntou ele com voz quase sumida.

— Meu quadro, como sabe, fez sensação na cidade. Tenciono rifá-lo, vendendo o bilhete por cinco francos. E, para que a cidade toda o veja, vou encarregar alguém de levá-lo em exposição de rua em rua. Não lhe parece boa a minha ideia?

O tabelião quis falar, mas a voz ficou-lhe presa na garganta.

—Não, não! Isso, decerto, não fará o senhor —gaguejou ele afinal.

—Por que não? Estou convencido de que esta ideia há de render-me pelo menos trinta mil francos. E, por menos, não renuncio a ela.

O notário suava frio: ver-se carregado às costas por um criado, com o letreiro: O encarcerado por dívida. Este pensamento aterrava-o.

Desesperado, puxa a carteira:

—Aqui tem — diz ele —um cheque da importância que exige. Pelo amor de Deus, mande-me entregar o retrato e não falemos mais nisto.

Meia hora depois, estava o avarento de posse da malfadada tela. Mas só quando a arrancou da moldura, e a viu consumida pelo fogo, é que se julgou seguro de novos planos de vingança da parte do pintor.

Entretanto, este lá foi receber a importância do cheque. Reservou para si dez mil francos, sua primeira exigência, e mandou entregar, em nome do tabelião, os restantes vinte mil a uma instituição pia de Bruxelas.


Fonte: “Anuário da Província do Rio Grande do Sul para o Ano de 1889”, 1888.

Fizeram-se breves adaptações textuais.

Ilustrações: PS/Copilot.


Notas:

1Antoine-Joseph Wiertz (1806 – 1865) foi um pintor e escritor belga.

2Harpagão (Harpagon, em francês) é a personagem principal da peça "O avarento", de Molière (1622-1673). 

 

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