GARÇOM, UM CHOPE! - Conto - Guy de Maupassant
GARÇOM, UM CHOPE!
Guy de Maupassant
(1850 – 1893)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
Qual o motivo que me levou a entrar naquela casa de bebidas? De nada sei. Estava frio. Uma chuva fina — um pó d’água em redemoinho — gelava os bicos de gaz com uma bruma transparente e os reflexos, que se estendiam pelo calçamento, mostravam a lama úmida e os pés barrentos dos transeuntes.
Não ia a parte alguma. Caminhava um pouco após o jantar. Passei pelo Credit Lyonnais, pela rua Vivienne e outras ruas ainda.
Vi, subitamente, uma grande casa de bebidas já meio cheia. Entrei sem dar por isso: não tinha sede.
Com o olhar, procurei um lugar onde não ficasse muito apertado e fui-me sentar ao lado de um homem que me pareceu velho: fumava um cachimbo de dois sous preto como carvão. Seis ou oito pires de vidro empilhados sobre a mesa, diante dele, indicavam o número de chopes que já tinha absorvido. Não examinei meu vizinho. Somente vira nele um bebedor de chopes, um desses frequentadores de casas do bebidas, que chegam pela manhã, quando abrem, e se vão à noite, quando fecham. Era sujo, calvo no meio da cabeça, enquanto que longos cabelos gordurosos caíam pela gola de sua sobrecasaca. Sua roupa, muito larga, parecia ter sido feita quando tinha ventre saliente. Adivinhava- se que as calças não eram seguras, porque esse homem não poderia dar dez passos sem as reajustar. Só em pensar nos sapatos e no que eles encerravam, aterrorizei-me. Os punhos, já desfiados, tinham as bordas completamente negras como as unhas.
Assim que me sentei ao lado dessa personagem, ouvi ela me dizer com voz tranquila:
—Vais bem?
Voltei-me com um movimento brusco, fitando-o. Tornou:
— Não me reconheces?
—Não.
—De Barretes.
Fiquei estupefato. Era o conde Jean de Barretes, meu antigo camarada de colégio.
Apertei-lhe a mão e fiquei tão embaraçado que não encontrava nada para dizer. Enfim, balbuciei:
—E tu, vais bem?
Respondeu-me placidamente:
—Eu? Como posso…
Calou-se.
Eu quis ser amável e procurei uma frase:
—E… e que fazes?
Resignadamente, respondeu-me:
—Tu vês…
Senti-me corar.
—Mas todos os dias?
—Todos os dias não é a mesma coisa?
Depois, batendo no mármore da mesa com um “sou” que retiniu gritou:
—Garçom, dois chopes!
Uma voz afastada repetiu: “Dois chopes!”. Uma, mais afastada ainda, lançou um: “Já vai!” agudo. Um homem de avental branco apareceu trazendo os dois chopes que derramavam gotas amarelas sobre o assoalho imundo.
De Barretes, num sorvo, esvaziou seu copo e o repousou vazio sobre a mesa, enquanto aspirava as gotas que restavam em seus bigodes.
Perguntou-me:
—Quais as novidades?
Eu, na verdade, não sabia nada de novo para lhe dizer:
—Mas, nada, meu velho. Eu sou comerciante.
—E isso te agrada?
—Não, mas o que queres? É preciso fazer-se alguma coisa.
—Para que?
—Mas… Para ocupar o tempo…
—Para que serve isso? Eu não faço nada, como vês, nunca. Quando se tem de que viver, é inútil. Para que serve o trabalhar? Trabalhar para ti ou para outrem? Se o fazes para si e se é que isso te agrada, então, muito bem; se o fazes para outrem, não és senão um imbecil.
Colocando o cachimbo na mesa, gritou novamente:
—Garçom, um chope!
E continuou:
— Fico com sede quando falo, disto já não tenho mais o hábito. Sim, não faço nada, deixo-me ir, envelheço já. Quando morrer, não terei pesar de nada. Não terei outra recordação a não ser desta casa. Mulher, filhos, cuidados, pesares, nada.
Esvaziou o chope que lhe trouxeram, passou a língua pelos lábios e pegou no cachimbo.
Olhei-o com espanto. Perguntei-lhe:
—Mas sempre foste assim?
—Sempre, desde o colégio.
—Isto não é vida, meu amigo. É horrível. Vejamos: fazes alguma coisa de bem, amas, tem amigos?
—Não. Levanto-me ao meio-dia. Venho, para cá, almoço; bebo chopes, espero a noite, janto; bebo chopes, depois, mais ou menos uma hora e meia da manhã, volto para dormir porque fecham. E é justamente isto o que mais me aborrece. Há dez anos, seguramente; passei seis sobre este banco, em meu canto; o resto em minha cama, nunca noutra parte. Por vezes converso com alguém daqui.
—Mas, chegando a Paris, que fazes antes de tudo?
—Faço o mesmo… no Cais Medicis.
—E depois?
—Depois… passo o rio e venho para cá.
—Qual o motivo dessa conduta?
—O que queres, não se pode ficar durante toda a vida no “Quartier Latin”? Os estudantes fazem muito barulho. Por muito tempo não sairei daqui. Garçom, um chope!
Percebi que ele queria encobrir-me qualquer coisa.
—Vamos, sê franco. Um desespero de amor, sem dúvida? Na verdade, és um homem abatido pela desgraça. Que idade tens?
—Trinta e três anos. Mas pareço ter quarenta e cinco.
Olhei-o bem na face. Seu rosto enrugado, malcuidado, parecia quase como o de um ancião. No alto do crânio, alguns cabelos cruzavam-se por cima da pele, dum asseio duvidoso. Tinha supercílios longos, um farto bigode e barba por fazer. Veio-me ao pensamento, não sei por quê, a visão de uma tina d’água amarelada, a água onde se lavaria todo esse cabelo.
—Com efeito, aparentas mais idade do que tens. Certamente, alguns desgostos…
—Asseguro-te que não. Sou velho porque nunca estou em contato com o ar puro. Não há nada que deteriore as pessoas como a vida dos cafés.
Não o podia crer.
— Foste noivo? Não se fica como tu, sem se ter amado muito.
Sacudiu tranquilamente a cabeça, semeando sobre o dorso pequenas placas brancas que caíam de seus últimos fios de cabelo.
— Não, sempre fui prudente. Nunca me deixei dominar pelai mulheres.
E, levantando os olhos para o lustre, que nos esquentava a cabeça, disse:
—Se estou calvo é por causa do gás. Ele é inimigo dos cabelos. Garçom, um chope! Tu não tens sede?
—Não, obrigado. Mas verdadeiramente me interessa. Desde quando te atiraste a semelhante abandono? Isto não é natural, não é normal. Há qualquer coisa sob isso.
—Sim, isso vem de minha infância. Recebi um golpe, quando era pequeno, que me enuviou a vida para até o fim dela.
—Que foi, então?
—Queres saber? Escuta. Deves te lembrar ainda do castelo onde vivi minha infância, pois que ali foste cinco ou seis vezes durante as férias. Lembras-te do majestoso edifício cinzento no meio dum grande parque e as longas avenidas de carvalho abertas para os quatro pontos cardeais? Lembras-te de meu pai e de minha mãe, ambos cerimoniosos, solenes e severos?
“Adorava minha mãe, temia meu pai. Respeitava-os, acostumado, aliás, a ver todo o mundo curvado ante eles.
“Eram, naquela região, senhor conde e senhora condessa, e os nossos vizinhos Tannemare Rovelet e os Brenneville mostravam para com meus pais uma consideração superior.
“Eu tinha, então, treze anos. Era alegre, contente de tudo como se é nessa idade, cheio de felicidade de viver.
“Ora, nos fins de setembro, alguns dias antes de minha ida para o colégio, como brincava de lobo no centro do parque, correndo por entre os galhos e as folhas, vi, quando atravessava uma avenida, papai e mamãe, que passavam. Recordo-me disso como se fosse ontem. Toda a linha de árvores curvava sob o vento, gemia, parecendo gritar, naquele grito surdo, profundo, que as florestas deixam escapar durante as tempestades.
“As folhas caídas, amarelas já, subiam como pássaros, turbilhonando, percorrendo depois toda a longa avenida como animais velozes.
“A noite tombava. Essa agitação do vento e dos galhos excitava-me, fazendo-me correr como um louco e uivar para imitar os lobos.
“Assim que vi meus pais, fui para eles com passos surdos, por baixo da galharia, para os surpreender como se fosse um verdadeiro ladrão.
Parei, tomado de medo, a alguns passos deles. Meu pai, presa de uma terrível cólera, gritava:
“—Tua mãe é uma idiota; no entanto, não é dela que isto parte, mas do ti. Disse-te que tenho necessidade desse dinheiro e espero que assines.
“Mamãe respondeu com voz firme:
“—Não assinarei. É a fortuna de Jean; guardo-a para ele e não quero que a consumas ainda com mulheres, como fizeste com tua herança.
“Então, papai, tremendo de furor, voltou-se e, pegando a mulher pelo pescoço, pôs-se a bater-lhe no rosto com a outra mão.
“O chapéu de mamãe caiu; seus cabelos soltos espalharam-se e ela procurava aparar os golpes e não conseguia. Ele, como louco, batia, batia. Ela caiu por terra, escondendo o rosto entre os braços. Então papai, para bater-lhe ainda, afastou suas mãos, pondo-lhe a descoberto o rosto.
Quanto a mim, meu caro, parecia que o mundo ia acabar, que as leis eternas vinham em derrocada. Sentia a perturbação que se apodera de nós diante das coisas sobrenaturais, diante das catástrofes monstruosas, diante dos irreparáveis desastres.
“Minha cabeça de criança perdia-se, turbava-se. Pus-me a gritar com todas as minhas forças, sem saber por quê, como tomado de um desvario, de uma dor, do uma alucinação espantosa. Meu pai me ouviu, voltou-se, viu-me, e, erguendo-se, veio direito a mim Acreditei que ia matar-me e fugi como um animal acossado, correndo em linha reta para o mato. Corri, talvez, uma hora, duas talvez, não me recordo. Quando veio a noite, caí sobre a relva e fiquei lá, alheio a tudo, devorado pelo medo, roído por um pesar capaz de quebrar para sempre um mísero coração de criança. Sentia frio e fome. Veio o dia. Não ousava nem levantar, nem caminhar, nem voltar, nem fugir, temendo ainda encontrar meu pai, a quem eu não queria ver.
“Teria morrido de fome, seguramente, junto à minha árvore, se um guarda não me tivesse descoberto e levado à força.
“Encontrei meus pais com suas fisionomias ordinárias. Minha mãe somente me disse:
“—Como me fizeste medo, diabinho; passei a noite sem dormir.
“ Nada respondi, mas chorei. Meu pai não pronunciou uma palavra.
“Oito dias mais tarde, ingressava no colégio.
“Pois bem, meu caro, tudo se acabou para mim. Vi a outra face das coisas, a má; a boa, desde esse dia, nunca mais vi. Que se passou em meu espírito? Qual fenômeno estranho desfez meus ideais? Ignoro. Não tenho mais gosto para nada, nada me prende, amor a ninguém, um desejo qualquer, ambição ou desespero, nada. Vejo sempre minha pobre mãe no parque, enquanto meu pai a espanca. Ela morreu já há alguns anos. Ele ainda vive; nunca mais o vi. Garçom, um chope!…”
Trouxeram-lhe o chope, que o meu amigo bebeu dum sorvo. Quando tornava a segurar o cachimbo, como estivesse tremendo, deixou-o cair, quebrando-o. Num gesto de desespero, disse:
—Aí está. É um verdadeiro pesar, este, por exemplo. Precisarei de um mês para tornar um novo como o que perdi.
E lançou, através da vasta sala, cheia agora de fumaça e bebedores, seu eterno grito:
— Garçom, um chope! E um cachimbo novo!
Fonte: “Gazeta de Noticias”/RJ, edição de 6 de outubro de 1935.
Fizeram-se breves adaptações textuais.

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