DOM FELICE E ISABETTA - Conto Humorístico - Giovanni Boccaccio

DOM FELICE E ISABETTA

Giovanni Boccaccio

(1313 – 1375)


Segundo ouvi dizer, nas cercanias do convento de São Pancrácio vivia um homem bom e rico chamado Puccio di Rinieri. Este, tendo-se entregado completamente às coisas espirituais, fez-se terciário1 de São Francisco, e adotou o nome de Irmão Puccio. Seguindo sua vida espiritual — e como de familiares só tivesse a mulher e uma criada, e não precisava ocupar-se em nenhum ofício —, frequentava muito a igreja. E porque era um homem simples e naturalmente rústico, rezava os seus pais-nossos, ia aos sermões e às missas, e nunca faltava às laudes cantadas pelos seculares. Puccio jejuava e se disciplinava, e comentava-se que pertencia aos flagelantes2.

A mulher, a quem chamavam senhora Isabetta, jovem de apenas vinte e oito anos, fresca, bela e roliça como uma maçã casolana3, pela santidade e talvez idade do marido, encontrava-se, frequentemente, em longos estados de abstenções, bem mais longos do que poderia desejar. E quando queria deitar-se, ou mesmo brincar com ele, ele lhe contava a vida de Cristo ou os sermões de Frei Anastácio, ou os queixumes de Madalena, ou coisas desta espécie.

Naquela época, voltou de Paris um monge chamado Dom Felice, do convento de São Pancrácio, que, muito jovem e belo, tinha agudo engenho e ciência profunda, e ao qual o Irmão Puccio se ligou com estreita amizade. E porque Dom Felice dirimia todas as suas dúvidas e, além disto, conhecia a sua condição, o Irmão Puccio o tinha por santíssima pessoa. Assim, começou a levá-lo à sua casa, brindando-o com almoço ou jantar, conforme a ocasião. Por amor a Puccio, Isabetta tornou-se amiga do monge Felice, e de bom grado lhe fazia as honras de casa.

Continuou, portanto, o monge as visitas à casa do Irmão Puccio e, vendo a mulher tão fresca e roliça, logo percebeu aquilo de que ela mais sentia falta. E cogitou que, se pudesse, pouparia trabalho ao Irmão Puccio, suprindo aquela carência. Fitando-a muitas vezes com grande astúcia e insistência, fez despertar na moça o mesmo desejo que ele sentia. O monge, notando isto, na primeira oportunidade que surgiu, participou a Isabetta os seus desejos. Todavia, malgrado estivesse ela disposta a satisfazer a tais desejos, não encontrava um meio de levar a pretensão a termo, porque a jovem senhora não se fiava de nenhum lugar do mundo para estar com o monge, a não ser na própria casa. Mas, em sua casa, nada era possível fazer, porque o Irmão Puccio jamais saía da cidade. Por isto, o monge sentia um grande pesar. Depois de pensar durante um bom tempo, ocorreu ao monge uma maneira de estar com a mulher em casa desta, sem suspeitas, apesar da presença do Irmão Puccio.

Certo dia, tendo o Irmão Puccio procurado Dom Felice, este lhe disse:

Já me dei conta, várias vezes, Irmão Puccio, de que o teu maior desejo é o de tornar-te santo. Mas, a tanto, parece-me que tu tens seguido um caminho demasiadamente longo, quando há outro que é bem mais curto. Este caminho é o que o papa, e alguns prelados maiores, conhecem e o põe em prática, mas não querem que seja divulgado, porque a ordem clerical, que vive, em sua maioria, de doações, desfar-se-ia de pronto, já que os seculares deixariam de prover os donativos e coisas assim. Mas, como és meu amigo, e muito me tem honrado, e se creio que tu não irás revelar o segredo a ninguém no mundo, e que estás mesmo determinado a segui-lo, eu o ensinaria a ti.

O Irmão Puccio, desejando ardentemente conhecer o caminho, começou, primeiro, a rogar-lhe, com grande insistência, que lhe ensinasse tudo; depois, passou a jurar que nunca, salvo com a sua permissão, contaria o segredo a outra pessoa, afirmando que, se fosse algo que ele pudesse seguir, assim o faria com toda dedicação.

Já que assim tu me prometes — disse o monge —, mostrar-te-ei o caminho. Tu deves saber que os santos doutores asseguram que, quem quer chegar à bem-aventurança, deve fazer a penitência que irás ouvir. Mas, procura entender: não garanto que depois da penitência tu deixarás de ser o pecador que agora és, senão que os pecados que tenhas praticado até o momento da penitência estarão perdoados em virtude dela; e os pecados que cometeres depois dela não serão contados para a tua condenação, pois serão lavados com a água benta, assim como agora o são os veniais. Deves, pois, fazer a confissão de teus pecados com grande diligência quando começares a penitência; depois disto, iniciarás um jejum e uma imensa abstinência, que deverão durar quarenta dias, nos quais não deverás tocar em mulher alguma, nem mesmo em tua esposa. Além disto, é necessário que tenhas, em tua própria casa, um lugar onde possas ver o céu à noite e para onde deves ir à hora das completas. Lá, terás uma tábua muito larga, colocada de tal maneira que, estando tu de pé, possas nela apoiar as costas e, com os pés no chão, estender os braços em forma de crucifixo. Caso queiras apoiar os braços nalguma taramela, poderás fazê-lo. E, desta maneira, olhando o céu, deverás permanecer sem se mover minimamente até as matinas. E se tu fosses letrado, seria conveniente que, neste tempo, fizesses certas orações que eu te diria; mas, como não és, deves rezar trezentos pais-nossos e mais trezentas ave-marias em reverência à Trindade. E, fitando o céu, terás sempre em mente que Deus é o criador do céu e da Terra, e terás na memória a Paixão de Cristo, estando tu na posição em que ele esteve na cruz. Depois, quando soarem as matinas, poderás, em querendo, sair de lá e, vestido como estiveres, lançar-te à cama para dormir. Na manhã seguinte, deves ir à igreja e lá ouvir, pelo menos, três missas e rezar cinquenta padre-nossos e tantas quantas ave-marias. Depois disto, poderás cumprir com simplicidade os teus afazeres, se tiveres algum. Em seguida, poderás almoçar e, após às vésperas, retornar à igreja e dizer certas orações que te darei por escrito, e sem as quais não se pode passar. Por fim, por volta das completas, voltarás a fazer aquilo que te disse antes. Fazendo isto, como eu já fiz, espero que, antes mesmo de terminada a penitência, tu sintas algo da maravilhosa sensação de beatitude eterna, se tudo tiveres realizado com devoção.

Isto não é coisa pesada demais, nem demasiadamente prolongada, e pode ser feita a contento. Por isto, quero, em nome de Deus, começar no domingo.

Depois que se despediu do monge, foi para casa. Lá, ordenadamente, e com a licença do monge, contou tudo à mulher. Esta compreendeu perfeitamente aquela história de permanecer o marido, sem se mover, até as matinas. Por isto, achando que aquele era um ótimo estratagema, disse ao marido que tudo aquilo, como qualquer outro bem que se fizesse à sua alma, era de seu contentamento. E que, para que Deus tornasse proveitosa a sua penitência, queria ela jejuar com o marido, mas não abraçar os demais encargos.

Estando ambos, assim, de acordo, chegado o domingo, o Irmão Puccio começou a sua penitência. O senhor monge, em combinação com a mulher, em horas nas quais o marido não o podia ver, ia jantar com ela na maioria das noites, trazendo sempre consigo coisas boas para comer e beber. Depois, deitava-se com a mulher até a hora das matinas, quando se levantava e partia; nesta hora, o irmão Puccio voltava para a cama.

O lugar escolhido pelo Irmão Puccio para cumprir a penitência ficava junto à alcova onde a mulher dormia. Era separado desse quarto apenas por uma parede muito delgada. Por isso, e porque o senhor monge e a mulher se divertiam mútua e desenfreadamente, o Irmão Puccio percebeu que o assoalho da casa tremia demais. Assim, depois de ter rezado cem dos seus padre-nossos, fez uma pausa e, sem se mexer, chamou a mulher e perguntou o que ela estava a fazer. A mulher, que era muito brincalhona, talvez cavalgando, então, sem sela, a besta de São Bento ou a de São João Gualberto, respondeu:

Ora, marido, eu me meneio4 o quanto posso!

Disse, então, o Irmão Puccio:

Como, então, tu te meneias? O que quer dizer este menear?

A mulher, rindo —porque espirituosa e intrépida, e porque talvez tivesse mesmo motivo para rir—, respondeu:

Como não sabes o que quer dizer? Pois eu te tenho ouvido dizer mil vezes: “Quem pela noite não ceia, toda a noite se meneia”.

Acreditou o Irmão Puccio que o jejum — que ela fingia fazer — fosse a razão de ela não poder dormir, e o motivo pelo qual ela tanto se remexia na cama. Então, de boa-fé, disse:

Mulher, bem que eu te disse: “Não faças jejum”. Mas, já que tu quiseste fazer, não penses mais nisto. Pensa em descansar. Tu te sacodes tanto na cama que fazes tudo se mexer.

Disse, então, a mulher:

Não te preocupes! Sei bem o que estou fazendo. Faz benfeito o teu, que eu faço benfeito o meu, se puder.

O Irmão Puccio calou-se, então, e voltou aos seus pais-nossos. E a mulher e o senhor monge, daquela noite em diante, arranjando uma cama em outra parte da casa, passaram, enquanto perdurou a penitência do Irmão Puccio, a fazer nela a sua grande festa. Depois, quando o monge partia, a mulher de pronto voltava para cama, para onde, pouco depois, concluída a penitência, o irmão Puccio seguia. Continuando, pois, o Irmão Puccio a penitência e a mulher o seu deleite com o monge, muitas vezes disse ela ao amante:

Tu mandaste o Irmão Puccio fazer a penitência, mas fomos nós que ganhamos o paraíso!

E, considerando que tudo lhe corria muito bem, a mulher, que durante muito tempo fora obrigada pelo marido a fazer abstinência, tanto se habituou à comida que o monge lhe provia que, mesmo depois de concluída a penitência do Irmão Puccio, encontrou um modo de alimentar-se em outro lugar, e por muito tempo desfrutou discretamente de seus prazeres. Portanto, para que as últimas palavras não sejam discordantes das primeiras, pode-se concluir que o Irmão Puccio, enquanto fazia penitência, na crença de que ganhava o paraíso, na verdade proporcionava-o ao monge — que lhe mostrava o caminho para lá chegar mais rápido — e à mulher que, por sua causa, passara grande necessidade daquilo que o senhor monge, como misericordioso, lhe deu em grande abundância.


Versão em português de Paulo Soriano.

Ilustração: Autor anônimo do séc. XV, in Décameron, tradução ao francês de Laurent de Premierfait.


Notas:

1 Leigo pertencente à Ordem Terceira de São Francisco.

2 Seita medieval cujos membros se autoflagelavam com o fim de obter a remissão dos pecados e atingir a boa-venturança.

3 De Casole d’Elsa, cidade da Toscana, Itália.

4 Manear-se: mexer-se.

 

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