O VOTO DO SENHOR VAN DEN TRUFF - Conto Humorísitico - Armand Silvestre
O VOTO DO SENHOR VAN DEN TRUFF
Armand Silvestre
(1837 – 1901)
Tradução de autor anônimo do séc. XX
I
O Sr. Van den Truff era um homenzinho baixo e gordo, de grandes suíças em forma de barbatanas, abdômen proeminente, pernas delgadas e tortas, e com um ar de importância que dava mesmo vontade de lhe encher a cara de bofetadas.
O desastrado que lhe puxasse pela lingua ouvir-lhe-ia decerto mais futilidades do que bons conceitos, porque o pretensioso sujeito assemelha-se a um odre cheio de vento do que uma ânfora de vinho generoso.
No entanto, como era um pedante enfatuado e todo presumido de ciência tudesca, o Sr. Van den Truff, na pequena cidade em que vivia, dava leis em política e passava pelo mais ativo agente das ambições germânicas d'além do rio Mosa.
Estava sempre falando na Alemanha; na destruição das raças latinas que, a seu ver, tinham os seus dias contados; na necessidade de um império que aproveitasse a obra de Carlos Magno: e, finalmente, na prussificação de toda a a Europa ocidental.
O seu gabinete de trabalho estava cheio de mapas geográficos, onde se viam aquelas excelentes ideias graficamente desenvolvidas com tintas de todas as cores. À França, deixava ele apenas as províncias baixas e anexava-lhe, em compensação, o vale de Andorra.
Era de ver como ele, nas cervejarias, discursava sobre aquelas novidades geográfico-políticas, num estilo massador e confuso, nebuloso como a filosofia de Hegel, e do qual a única coisa que se depreendia era o seu horror pela pátria de Diderot, Montague e Rabelais.
E, no fim de contas, o bom do gorducho não passava de um pobre-diabo!
II
É que a madame Van den Truff (familiarmente Héloïse) era infinitamente mais agradável do que ele. Era uma dessas filhas do Norte transformadas pela invasão espanhola.
O duque de Alba, na sua perseguição às terras de Flandres, prestou enorme serviço aos apreciadores da beleza feminina. Com efeito, do cruzamento das raças proveio um dos mais formosos tipos de mulheres, que já nos Ardennes se começava a encontrar. Imaginem umas esplêndidas criaturas com todos os opulentos encantos das mulheres de Rubens, admiravelmente pálidas, de olhos pretos e madeixas negras como a noite. Outras são loiras, dede um loiro carregado, riquíssimo de tons. Palavra de honra, leitor, que vale a pena, só para as ver, fazer a viagem, como vale a pena ir à Provença para encontrar em Agde verdadeiras gregas contemporâneas de Fídias.
Ora, deixemos o duque de Alba, tão injustamente caluniado por Mr. Sardou, e voltemos a Héloïse Van den Truff, legítima esposa do homenzinho gordo, de grandes suíças em forma de barbatanas. Aquela honestíssima dama tinha, como já o fizemos pressentir, umas relações íntimas.
O favorecido era o conselheiro Moulaër, um perfeito rapaz, alegre, filósofo que desprezava supinamente as questões internacionais e lhes preferia as delícias do amor. Um sujeito que era capaz de dar toda a navegação do Danúbio, o equilíbrio dos orçamentos turcos e outras tantas ninharias por um simples beijo duns lábios rosados, e que entregaria a chave dos Dardanelos ao primeiro ferro-velho que lhe aparecesse, se com o produto pudesse com se comprar o sorriso de qualquer criada gentil.
Oh! Como estaria assegurada a paz universal se todos pensassem como aquele bom Moulaër!…
III
Chegara a época das eleições senatoriais, época do maior interesse para o Sr. Van den Truff, pois que se tratava de fazer eleger um homem absolutamente dedicado futura germanização, um judeu chamado Isaac Snob, cuja vitória teria o valor duma profissão de fé em honra da anexação. Isto também era de todo em todo indiferente para o conselheiro Moulaër, porque, enquanto o Sr. Van den Truff andava a papaguear pelos cafés e a fazer propaganda, tomava ele boas fartadelas de amor com a gentil Héloïse e tirava, como se costuma dizer, o ventre de misérias. Ela desejaria também que a época eleitoral se prolongasse indefinidamente e, como era devota, andava sempre rezando uma novena para que tivesse de haver segunda votação. Deus ouvi-la-ia, decerto pelo fervor da sua prece e pela santidade da sua causa.
Entretanto, como se ia aproximando o grande dia, o sr. Van den Truff confeccionara a sua lista com religioso cuidado.
Num pedacinho de papel fino inscrevera o nome de Isaac Snob, circundado dum arabesco decorativo figurando nos cantos capacetes prussianos e formando, no conjunto, engenhosos emblemas. Levara sete ou oito horas a fazer essa obra-prima de asneira, que guardara depois no bolso das calças.
Chegado o grande dia, saiu de madrugada, radioso e triunfante, porque tinha de andar três boas léguas a pé para ir lançar na urna o precioso bilhete.
Meia hora depois do Sr. Van den Truff partir, o conselheiro Moulaër dava entrada no quarto de Héloïse.
IV
Quem diabo está ali no meio da estrada a bater o pé de zangado e a praguejar como um carreiro?
É o Sr. Van den Truff que, quando ia já a meio caminho, viu que se tinha esquecido da sua obra-prima de caligrafia, da sua querida lista. Para ir mais decente e mais bonito, vestira as calças novas e deixara o precioso papelinho na algibeira das outras.
E essas outras estavam no quarto, aos pés da cama, estendidas sobre uma cadeira; lembrava-se bem, era como se as estivesse vendo.
Ora! Votaria como toda a gente. Escreveria o nome do seu candidato no primeiro pedaço de papel que pudesse apanhar.
Mas ter perdido tanto trabalho!.. Não, isso não podia ser.
E o sr. Van den Truff voltou para trás e deitou a correr em direção à casa, bufando como uma foca, suando como um burro, blasfemando como um herege, dando o mundo inteiro, a começar por ele, a todos os diabos.
—Ah, meu Deus! — exclamou Héloïse ao senti-lo meter a chave na fechadura.
— A minha pena é estar aqui — disse o conselheiro Moulaër.
E, ao mesmo tempo que proferia estas palavras, embrulhava-se muito bem na roupa da cama, coisa prudente em casos desta ordem e agradabilíssima em quaisquer outros.
Mas o Sr. Van den Truff, muito envergonhado pela sua distração, não tinha o menor desejo de fazer estardalhaço. As cortinas da janela, corridas, conservavam o quarto numa obscuridade quase absoluta. De resto, lembrava-se agora o homem que havia alguém na cama de sua mulher!…
— Olá! Sou eu, Nini. Não te levantas, não te incomodes.
Já se vê que Nini não acendeu a vela. O conselheiro Moulaër também não teve a veleidade de assinalar a sua presença por exercícios pirotécnicos de espécie alguma. Fizeram-se ambos mortos, o que é delicioso quando uma pessoa o não está realmente.
Daí a segundos, o Sr. Van den Truff tornava silenciosamente a fechar a porta e punha-se de novo a caminho. Encontrara as calças no lugar onde sabia tê-las deixado e, na algibeira, o seu papelinho dobrado, tal qual o metera lá na véspera.
Por isso, tendo-o cuidadosamente metido no bolso das calças novas, deitou a correr como se houvesse um touro atrás dele.
V
Ao chegar, foi muito aclamado por alguns imbecis. Deitou a sua lista na urna e esperou pelo escrutínio, dizendo, muito orgulhoso, lá com os seus botões:
—Em vendo a lista, adivinham logo que é a minha.
E, triunfo inesperado, nomearam-no para presidir à importante operação, cargo que ele assumiu com a solenidade e o aprumo devidos ao ato. De repente, o cidadão que abria os votos e proclamava os nomes, corou, fez uma careta medonha, amarrotou vivamente o papelinho, que acabara de ler para si, e deitou-o ao chão.
—Voto nulo! — exclamou ele, indignado.
—Porquê? —peguntou severamente o Sr. Van den Truff.
—Voto nulo, já disse. Foi uma brincadeira de mau gosto.
—Não há cá brincadeiras, nem meias brincadeiras — prosseguiu o sr. Van den Truff. —Quaro ver! — Está doido?! Quero ver, já disse! Estou no meu direito.
—Pois então, já que quer ler, veja!
O Sr. Van den Truff apoderou-se do papelinho, desembrulhou-o furiosamente e leu:
“O estúpido Van den Truff sai amanhã às quatro horas da madrugada. Espero-te às cinco, o mais tardar, meu querido. Vamo-nos divertir muitíssimo, não te digo maís nada. Tua dedicada — Héloïse”.
— Já leu? Está satisfeito? —perguntou o cidadão escrutinador.
O sr. Van den Truff fizera-se de mil cores, começara a balbuciar umas palavras sem nexo, mas nada compreendera.
E, contudo, o caso era simples.
O conselheiro Moulaër pusera as calças onde Van den Truff estendera as suas na véspera, e o eleitor, por engano, julgando tirar da algibeira o voto, tirara o bilhete de rendez vous que a mulher, na noite anterior, mandara ao seu querido.
Entretanto, toda a assistência reclamava a leitura da lista em voz alta, para julgar o caso de nulidade. Teve que satisfazer se aquela exigência, e bem podem os leitores imaginar como a assembleia se riu à custa do pobre Van den Truff.
Este, querendo a todo o custo livrar-se do ridículo, declarou ser ele próprio o autor daquele bilhete e que pretendera apenas fazer uma caçoada.
Então, o escrutinador — que proclamava os nomes e a quem ele acabava de maltratar e desconsiderar — fez levantar imediatamente o processo verbal contra o gracioso de mau gosto, que foi condenado a oito dias de cadeia e perdeu, sem remissão, a confiança do governo alemão.
O que ele não perdeu, o bom do Sr. Van den Truff, foi a classificação merecida de um grande… pobre-diabo.
Fonte: “O Figueiroense”/PT, edições de 30 de setembro e 14 de outubro de 1911.
Fizeram-se adaptações textuais.
Ilustração de Ferdinand Bol (1616 – 1680).

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