A CARRANCA - Crônica - Henry Evaristo


 

A CARRANCA[1]

Henry Evaristo

(1975 - 2010)

 

Vivi uma experiência similar um dia.

Estava numa lanchonete e um menino de rua me abordou, pedindo comida. Creio que eram umas seis horas da tarde. Mas ele não pediu o lanche com muitas esperanças de ganhá-lo, pois, mal me abordou, já foi dando as costas para ir embora; antes mesmo de obter uma resposta, como se o próprio ato de pedir e não conseguir, já repetido tantas vezes naquele dia, tivesse se tornado automático e inescapável. Minha experiência começou quando ele se virou completamente surpreso ao me ouvir chamá-lo com um desconsertado "Ei, espera ai!".

Voltou, ficou parado em pé na minha frente. Mandei sentar-se e esperar. Fui até o caixa, paguei minha conta e ordenei que servissem ao menino o que ele quisesse. Após entregarem o pedido do menino, paguei o valor. Não voltei à mesa onde o garoto estava. Fiquei vendo-o de longe, lá do caixa, enquanto ele começava a comer seu lanche com a cabeça abaixada.

Ora, sou um sujeito carrancudo por natureza, e creio que o menino teve medo de que eu, de repente, e mudasse de ideia, com minha cara feia, e lhe tomasse a comida de volta.

Saí da lanchonete sem olhar pra trás. Logo adiante havia uma livraria com muitas prateleiras com espelhos. Refletida na superfície de uma delas, pude ver a imagem do menino, em pé, em frente à mesa onde eu o deixara. Me virei, não sei por qual motivo. Ele estava me olhando; refrigerante numa mãozinha, sanduíche na outra. E me fitava, mastigando vorazmente.

Entendi naquele momento que aquele menino estava comendo pela primeira vez naquele dia. Compreendi que ele lutara o dia inteiro para conseguir, à custa de pedidos, aquela refeição; e compreendi que ele não sabia quando iria comer de novo. Vi tudo isso no olhar que ele me lançava, um menino de não mais de 10 anos tornado homem pela crueldade do mundo. Mas, por trás de tudo o que poderia haver em seu olhar, foram as outras imagens que ele me transmitiu que me destruíram: vi naquele semblante, moreno e atarracado, um profundo alívio e agradecimento. Nunca em toda a minha vida alguém me agradeceu algo com tanta força, com tanta verdade e sem dizer uma palavra, somente com o olhar. Quando ele viu que eu o observava também, ergueu timidamente o bracinho com o sanduíche e acenou, sorrindo com a boca cheia.

Senti me faltarem forças nas pernas. E uma vontade incontrolável de chorar me dominou imediatamente. Mas a carranca não pode jamais perder sua hegemonia no semblante dos homens dominados pelo imoral sistema, e me virei para fugir daquela situação. Deixei o menino pra trás, mas, até hoje, não tem dia em que não lembre dele e pense em se ele tem conseguido encontrar outras carrancas como a minha em seu caminho.

 

Ilustração: Neto Sete Oito.



[1] Narrativa escrita a partir da leitura da crônica “Ogusto”. 

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